Um dos decretos assinados pelo presidente Lula (PT) no dia de sua posse, que traz restrições para o acesso a armamento e munições no país, gerou uma série de impactos no tiro esportivo brasileiro, modalidade que deu ao Brasil a primeira medalha de ouro nos Jogos Olímpicos. A conquista ocorreu nos Jogos da Antuérpia, na Bélgica, em 1920 – além do ouro, de Guilherme Paraense, o país foi novamente ao pódio na competição, desta vez com a medalha de prata do atirador Afrânio da Costa.
De lá para cá, o Brasil tem sido presença constante nos pódios dos campeonatos mundiais das diferentes modalidades do esporte. Em 2022, o país ficou em segundo lugar no campeonato pan-americano de tiro prático, realizado na Flórida, nos Estados Unidos, ao conquistar 34 pódios. Já no campeonato mundial, que aconteceu na Tailândia, os atletas brasileiros também tiveram boa performance ao conquistar sete pódios.
Além disso, o Brasil ocupa a liderança entre 140 países no número de campeonatos reconhecidos pela International Practical Shooting Confederation (Confederação Internacional do Tiro Prático). A quantidade de provas realizadas e o número de participantes definem o ranqueamento dos países.
Apesar disso, atletas do tiro esportivo passam por um momento delicado, e confederações e demais entidades ligadas ao desporto apontam que o novo decreto pode inviabilizar a prática no Brasil. As novas regras sobre armamento estabelecem medidas diversas aos CACs, grupo do qual fazem parte os atiradores esportivos.
Uma das principais medidas que atingem os atletas é a limitação do número de munições adquiridas, que terão um teto de 600 projéteis ao ano por arma. Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), o limite era de 5 mil munições anuais, o que já era visto por praticantes do esporte como insuficiente.
Há um dispositivo no decreto que determina que o Comando do Exército poderá conceder autorização para aquisição de munições em quantidades superiores para atiradores desportivos profissionais, mas atletas relatam dificuldades para conseguir tal permissão.
“600 munições são inviáveis considerando que apenas uma etapa do campeonato brasileiro de arma curta tem aproximadamente 400 disparos. Isso em uma única etapa sem considerar treinamento e as etapas seguintes”, explica Hwaskar Fagundes, presidente da Confederação Brasileira de Tiro Prático (CBTP). “Temos atletas de alta performance, que participaram do mundial, que efetuaram 100 mil disparos no ano em seus treinamentos. É outro padrão, mas um atleta mediano, que é a grande maioria, efetua no mínimo mil disparos nas vésperas de uma prova para se preparar”, declara.
Outro ponto que preocupa praticantes do esporte é a restrição do número de armas por atleta, que foi reduzida de 60 para três, uma vez que há competições com diferentes modalidades em que cada uma é feita com um tipo de arma. A suspensão do registro e da renovação do registro de armamento também gera apreensão no setor – atletas com armas cujos registros vencem após o início da vigência do decreto ficam irregulares e não podem deslocar seus equipamentos para os locais de competição.
Por fim, pessoas ligadas ao esporte apontam receio quanto à diminuição de novos praticantes, o que enfraquece a modalidade. Isso porque o decreto proibiu a prática do tiro recreativo para pessoas que não são CACs e também condicionou a prática do tiro esportivo a menores de dezoito anos a uma autorização judicial. A título de exemplo, um dos atletas brasileiros que subiu ao pódio no mundial do ano passado na Tailândia era menor de idade.
“Tudo isso cria uma série de barreiras e dificuldades para o esporte. Sobre a suspensão do tiro recreativo, por exemplo, ninguém compra um carro sem andar nele. Como mais pessoas vão se tornar atiradores desportivos se não podem sequer conhecer a prática?”, questiona Marcelo Danfenback, presidente da Liga Nacional dos Atiradores Desportivos (Linade).
Entidades buscam diálogo com novo governo para reverter restrições ao esporte
Antes mesmo da publicação do decreto, as principais entidades representativas do tiro esportivo vinham se articulando para debater meios de frear os impactos das restrições aos CACs já anunciadas por Lula desde a campanha eleitoral. A CBTP, a Confederação Brasileira de Tiro Esportivo (CBTE), a Liga Nacional de Tiro ao Prato e outras entidades formaram, então, o grupo representativo Unidos pelo Tiro Esportivo.
O objetivo é aumentar a representatividade para tentar dialogar com o novo governo e, principalmente, conseguir cadeiras no grupo de trabalho anunciado pelo ministro da Justiça para tratar da nova regulamentação do Estatuto do Desarmamento. Até o início de fevereiro, Dino deve anunciar os membros do grupo, que será composto por integrantes do governo, da Polícia Federal (PF), do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, além de representantes de instituições sem fins lucrativos que atuem com o tema a serem indicadas pelo ministro. É nesse espaço que o recém-criado Unidos pelo Tiro Esportivo pretende se inserir para tentar reverter as restrições ao esporte.
“Buscamos ao menos duas cadeiras disponíveis para o esporte no grupo de trabalho anunciado no decreto, porque entendemos que como essa questão do CAC regulamente o esporte, então logicamente precisamos ser ouvidos”, declara o presidente da CBTP. Em paralelo, representantes do grupo buscam interlocução com ministros do governo. “Solicitamos uma audiência com a ministra do Esporte, Ana Moser, e outra com o ministro da Justiça, Flávio Dino, mas ainda não houve resposta, diz Fagundes.
As entidades reforçam que são favoráveis ao controle de armas e à regulamentação adequada de todas as atividades que envolvem manuseio de armamento, mas se posicionam contra excessos desnecessários e prejudiciais à prática esportiva.
Estão em curso outras tentativas de reduzir os efeitos do decreto de maneira ampla, não apenas os praticantes de tiro esportivo. No Senado Federal, por exemplo, há um movimento de parlamentares de oposição que articulam a derrubada do decreto por meio de projetos de decretos legislativo (PDLs). Um deles, apresentado no dia 3 de janeiro, é do senador Marcos do Val (Podemos-ES), que é relator de um projeto de lei que regulamenta a posse de armas para CACs. Como motivo para sustar o decreto, o parlamentar justifica que o texto exorbita o poder regulamentar atribuído ao poder Executivo, uma vez que trechos do decreto estariam em contrariedade com a Lei 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento.
Na Câmara dos Deputados também há parlamentares que buscam anular as novas regras. O deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS) foi o primeiro a apresentar uma proposta para sustar os efeitos do decreto. Ele alega que as novas regras violaram a competência do Congresso para legislar sobre o tema. O deputado Kim Kataguiri (União-SP) anunciou que também apresentará projeto de lei para anular o decreto de Lula.
Por fim, o deputado federal eleito Marcos Pollon (PL-MS), que assumirá o cargo em fevereiro, disse à Gazeta do Povo que pretende investir em uma saída legislativa ao mesmo tempo em que recorrerá ao Judiciário. “A partir da posse do Legislativo, em fevereiro, a gente vai ingressar com um projeto de lei para tentar sustar esse decreto. Vamos buscar pelas vias judiciais a manutenção dos direitos, porque isso vai sacrificar um setor inteiro, que, efetivamente, gera emprego e renda”, diz Pollon, que é advogado especialista em legislação de controle de armas e presidente da Associação Pró-Armas.
Fora do Legislativo, outra entidade a tentar a via do Judiciária para suspender as novas regras é o Instituto Brasileiro de Tiro que, no domingo (8), protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pedindo a anulação do decreto.
“O controle de armas se faz necessário, mas não adianta simplesmente estrangular o esporte a ponto de tornar a prática inviável. Infelizmente é uma maneira de afetar, por questões políticas, um esporte que existe há dezenas de anos”, afirma o presidente da Linade. “No caso dos CACs, como em qualquer área, infelizmente há pessoas que se desvirtuam pelo caminho e em algum momento fazem alguma bobagem. Mas o governo parece que quer fazer dessa exceção a regra geral”, lamenta Danfenback.